O NOSSO BOM MONGE CHEGOU «ENHRUMÉ»!
Disse, na postagem anterior que, aquela carta, não era, nem
mais nem menos, do que o início da pérola que só o gabarito do escritor J.V.Natividade podia descrever, com tanta subtileza e com tanto humor
implícito. A segunda carta, que a seguir se reproduz, diz respeito a uma
segunda visita do mesmo monge que, deduzo que o e mesmo, pelo seu
comportamento, já conhecia o provérbio inglês «Bebe vinho e terás gota; não
bebas vinho e terás gota na mesma», pelo que deixo, aqui, o fim da pérola
iniciada, que espero gostem e comentem;
Mosteiro de Alcobaça
Imagem do
Google
«Resultou de uma doação de D.
Afonso Henriques à Ordem de Cister, e, daí a vinda do monge Frei Maur em visita
de estudo e …. Esta doação é feita depois da vitória sobre
os Mouros na conquista Santarém.
Ei-la :
“ Meu querido amigo
A sua grande e boa
amizade mais uma vez honrou este seu insignificante amigo permitindo-lhe que molhe
os seus sempre ressequidos beiços, de modesto funcionário, nos néctares
reservados aos grandes deste mundo e, no Olimpo, aos deuses imortais.
Assim como o pelicano,
ao que dizem, dilacera a própria carne para alimentar os filhos, assim também o
meu amigo devasta a sua garrafeira ( que é carne da própria carne ) para que eu , tão
longe eleve a alma ao êxtase. Eu, e um frade meu amigo.
Tenho de novo cá em minha
casa Frei Maur, piedoso monge cisterciense que, ao ver abrir a caixa, e ao
comtemplar as garrafas, me deu, nas costas, uma suave pancadinha, pôs os olhos
em alvo, deu um estalo com a língua e lambeu os beiços. E perante tão
expressiva e inocente mímica, senti em perigo o meu tesouro porque, nisto de
sede, desconfio que os frades são ainda piores que os funcionários públicos.
Soltou um «voilá» que
quase me fez explodir e me obrigou a rosnar entre dentes: «voilá» coisíssima
nenhuma, meu frade gulosão! Haja decência!»!
É que o digno monge,
discretamente, docemente, assim como não quer a coisa, tem feito tais estragos
na minha pobre garrafeira que, se não fosse a generosidade de bons amigos,
aquilo não passava de um reles cemitério de garrafas vazias.
Na última estadia aqui,
durante doze dias, em Novembro, logo no segundo dia espirrou, tossiu e, com
modos tristes, confessou-me que estava « enrhumé». Solícito, ofereci-lhe uma
aspirina; mas o santo varão mediu-me com estranheza de alto a baixo, concentrou-se,
consultou a alma, estendeu os beiços e exigiu conhaque.
Ora eu tinha aberto, religiosamente,
há poucos dias uma garrafita de um fine champanhe que era a luz dos meus olhos.
Puro veludo, e com um bouquet e uma suavidade que só se alcançam com sábios e transcendentes cuidados de destilação e o lento envelhecer em tonéis
veneráveis. Uma preciosidade, enfim meu preclaro amigo!
E foi só isto : às 8
horas, mal luzia a manhã, conhaque; às 10, conhaque; ao almoço, conhaque; às 3
da tarde, conhaque; às 6, conhaque; ao jantar, conhaque; ao serão, conhaque; e,
enfim, antes de ir para a cama, conhaque ainda. Tenho conhecido constipações
exigentes; porém, como isto nunca vi em minha vida.
E quando eu me
preparava para comemorar, com dignidade, o aumento de vencimentos do
funcionalismo, a garrafa estava vazia!
Já lhe expliquei que
isto dos álcoois é péssimo para o fígado; descrevi-lhe quadros de cirrose de
arrepiar; cheguei ao pormenor de descrever como se comportam as células do organismo
perante o mortal tóxico, degeneram as células nobres do cérebro; falei-lhe das
úlceras do estômago, do duodeno, da coquexia precoce… Exaltei, depois as
virtudes da água, do capilé, da simples limonada e, cinicamente, falei-lhe até
nas propriedades estomacais do pirolito.
Na esperança de salvar
ainda qualquer coisa da minha garrafeira, e disposto a todos os sacrifícios,
fiz esta proposta digna; «Mon père salvemo-nos pela abstinência; renunciemos a
esses venenos, bebamos água, e só água, que a há aqui fresca e de primeiríssima
qualidade! Mas o santo varão, em voz baixa, magoada e triste, de cortar o
coração, acabou por me dizer: « Mon ami , mon cher ami: mon estomac ne tolère
pas de l´éau !».
Que lhe hei-de fazer,
meu amigo!
Com um gesto largo e
generoso, abri uma garrafa de Porto de 1912, enchemos os cálices e bebemos com
unção à sua saúde pedindo ao Bom Deus que lhe dê todas as felicidades no Ano
Novo!
Abraça-o afetuosamente
o amigo muito dedicado e agradecido.
J.V. Natividade
2 Janº 59.
Nota do Autor d´O grande Livro do Vinho- J.Duarte Amaral: «Este bom
frade era decerto de opinião de que os religiosos não deviam ficar excluídos da
possibilidade de provar as coisas boas que Deus proporcionou aos homens para
seu prazer».
abibliotecaviva.blogspot.pt
24-01-2014
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